Abusadores se aproveitaram de seus cargos no esporte para violentar crianças por anos. Uma mancha no esporte, cuja repercussão prejudica a grande maioria de profissionais e atletas sérios

Há pouco tempo, um escândalo esportivo voltou os holofotes para a ginástica, mas não da forma como os amantes da modalidade gostariam. 42 atletas denunciaram o ex-técnico da seleção brasileira, Fernando Lopes de Carvalho, por abuso. No dia seguinte às denúncias virem à tona, Diego Hypólito, um dos mais reconhecidos ginastas brasileiros, revelou ter sofrido bullying de cunho sexual na infância, quando treinava no Flamengo.

Em janeiro deste ano, o ex-médico da seleção americana, Larry Nassar, foi condenado a cumprir pena de 40 a 175 anos por abuso. Foram 156 atletas, incluindo campeãs olímpicas como Simone Biles, que descreveram os abusos que sofreram. A pena somou-se a outros 60 anos que Nassar já cumpria por posse de pornografia infantil.

Os casos chamaram atenção não apenas por envolver tantos atletas renomados, mas também por terem sido praticados por tantos anos e, suspeita-se, com “vista grossa” dos órgãos responsáveis. As revelações atraíram os olhos para a ginástica, modalidade que cresceu muito no país, inclusive na região.

A Voz do Esporte entrou em contato com profissionais da área esportiva, que trabalham com a modalidade em Itupeva e Jundiaí para saber mais sobre a situação da ginástica nessas cidades e sobre a experiência dos próprios treinadores. Também é importante apontar que os casos denunciados não podem ser um fator que tire a credibilidade da prática esportiva.

“Na minha formação sempre ouvi falar (de abusos), os professores falavam, mas nunca vivenciei um caso real, ou conheço alguém que tenha vivenciado. Durante toda minha formação e especialização sempre reforçaram a máxima da Ética Profissional. E eu gosto de trabalhar bem próximo dos pais, pois fazemos parte como educadores na formação do Aluno/Atleta, e eles podem acompanhar o nosso trabalho de perto, mas lógico que cada um em sua área. Os pais educam e os professores reforçam a educação através de um exemplo e postura profissional, além de ensinar o que cabe a eles. No meu caso, as técnicas e conceitos. Durante meus anos na área, fui desenvolvendo e organizando regras que facilitam o convívio entre Professor/Alunos, Alunos/Alunos e Professor/Pais. Faço periodicamente reunião com os pais e explico com detalhes tudo que fazemos; já recebi elogios quanto à minha postura e às vezes sou bem rígido”, comenta Anderson Redressi, que além de responsável pela equipe de ginástica em Itupeva, também é professor de Circo Social.

Anderson com suas alunas em uma apresentação em Cajamar

Para ele, apesar do grande número de vítimas, esses são casos isolados que acabam repercutindo também por conta de sua gravidade. “Infelizmente casos de abuso acontecem em todos os lugares, em vários setores, acredito que a impunidade seja o principal motivo e também falta fiscalização”.

Atualmente professora em uma academia em Jundiaí, Natália Brossi competiu vários anos antes de se tornar instrutora e falou da sua experiência. “Na minha época de atleta eu nunca soube de nenhum caso. Tive um técnico homem durante toda a minha vida na ginástica artística e ele tratava todas as atletas com MUITO respeito”, elogia.

A professora e atleta Natália Brossi

A atleta também lamenta o ocorrido e opina como a prevenção é uma arma importante para que esse tipo de crime não volte a ocorrer: “É muito triste para o esporte ver que isso ocorreu com muitos atletas de ponta e que em alguns casos existe uma omissão de integrantes da comissão técnica ou da própria entidade (clube, federação ou o órgão responsável). Torço para que a partir de agora, com a divulgação desses casos, todos os envolvidos sejam punidos e isso não aconteça mais na ginástica ou em qualquer outro esporte. A repercussão é muito negativa para o esporte, que atualmente estava sendo muito procurado. A ginástica artística é cada vez mais valorizada por ser esporte de base, mas notícias como essa, com certeza são um choque para os pais. A melhor maneira de lidar com a situação é uma boa relação de confiança e comunicação entre alunos, pais e técnicos. Nos casos de atletas de competição, a presença de um psicólogo nos treinamentos diários e em competições seria de grande ajuda para que o mesmo possa detectar qualquer comportamento diferente (tanto dos alunos quanto do técnico)”.

A situação em Itupeva

Além dos profissionais da ginástica, A Voz do Esporte também entrou em contato com Eliana Alencar, que foi conselheira tutelar em Itupeva de 2009 a 2016, tendo presidido o Conselho em seus últimos anos de atuação, para saber sobre os casos de abusos na cidade, além de informações sobre como prevenir ou denunciar.

“Durante minha atuação como conselheira, muitos casos de abuso foram denunciados, Itupeva tem um índice relativamente alto de abusos sexuais infanto-juvenis. No entanto, durante esse período não chegou até o Conselho nenhum caso de abuso que tenha ocorrido em treinamentos esportivos, escolinhas de futebol ou outras modalidades de esportes. Sabe-se, porém, que as denúncias são dificultadas por uma série de fatores. Entre eles a falta de informação da própria vítima a respeito do abuso, por não ser algo comum da infância a sexualidade, as crianças não sabem exatamente o que está acontecendo, às vezes se sentem na obrigação de obedecer ao adulto que abusa delas, ou até mesmo são ensinadas pelo abusador que aquilo é uma expressão de amor ou algo normal”, comenta.




“Abuso sexual de crianças e adolescentes menores de 14 anos é configurado na lei como estupro de vulnerável. Mas nem sempre ocorre com atos de violência como amarrar a vítima ou bater. É de toda forma uma violência sem tamanho, mas os abusadores usam de artifícios psicológicos, de ‘sedução’, convencimento ou da autoridade que tem sobre as vítimas para que elas pacificamente obedeçam aos comandos. Por isso os abusos podem ocorrer muitas vezes”, alerta Eliana, que explica que o silêncio também pode ter relação com ameaças, seja de morte de alguém da família ou torturas psicológicas como dizer que a vítima será desprezada pela família e amigos caso seja descoberto o abuso. Também há casos em que o abusador oferece vantagens, presentes, benefícios à vítima, até casamento em troca do sigilo. A falta de percepção ou mesmo medo de familiares ou conhecidos da criança também contribuem para que muitos casos não cheguem a ser denunciados.

“As denúncias não devem fazer a sociedade recuar em relação ao incentivo para crianças e jovens no mundo do esporte. A prática de atividades esportivas oferece muitos benefícios para as crianças, contribuem para a vida cognitiva, saúde, socialização, disciplina, melhora a autoestima, ainda é uma das mais poderosas ‘armas’ contra o envolvimento e uso de drogas. 

A formulação de políticas públicas é fundamental para garantir a segurança das crianças que praticam esportes. As instituições realmente precisam ser muito sérias e não aceitar em hipótese alguma nenhum ato de abuso. Precisam desconstruir conceitos, desnaturalizar e entender de fato o que é o abuso sexual. Precisam entender a obrigação de zelar pela integridade física, psíquica, emocional das crianças. A violação de direitos ocorre por ação ou omissão. Se a instituição se omite diante do fato também está violando direitos e devem ser denunciadas, investigadas e responsabilizadas”.

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Os efeitos nas vítimas são devastadores

“A decisão da família de agir em defesa da criança/adolescente é corajosa e importante, a denúncia acaba revelando segredos da família que muitos preferiam esconder”, revela Eliana.

A violência sexual na infância revela situações limite, e rouba uma fase da vida onde medo, violência, tristeza e sexo não deveriam ter lugar. A complexidade deste fenômeno traz alguns impactos nas relações familiares a saber:

  • Deturpa as relações sócio-afetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes ao transformá-las em relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas;
  • Confunde, nas crianças e adolescentes violentados, a representação social dos papéis dos adultos, descaracterizando as representações sociais de pai, irmão, avô, tio, professor, religioso, profissional, empregador, quando violentadores sexuais; o que implica a perda da legitimidade e da autoridade do adulto e de seus papéis e funções sociais;
  • Inverte a natureza das relações adulto/criança e adolescente definidas socialmente, tornando-as desumanas em lugar de humanas; desprotetoras em lugar de protetoras; agressivas em lugar de afetivas; individualistas e narcisistas em lugar de solidárias; dominadoras em lugar de democráticas; dependentes em lugar de libertadoras; perversas em lugar de amorosas; desestruturadoras em lugar de socializadoras.

Fique alerta

A identificação precoce da ocorrência da violência é um fator fundamental para a transformação da situação e atenção às pessoas envolvidas. Vale lembrar que é de extrema importância o cuidado ao se levantar estas suspeitas, devendo-se sempre considerar um contexto amplo em que aparecem alguns sinais, que podem ser físicos, comportamentais e/ou sociais.

É importante perceber:

  • Se houve mudanças bruscas, aparentemente inexplicáveis, de comportamento da criança/adolescente;
  • Mudanças súbitas de humor, comportamentos regressivos e/ou agressivos, sonolência excessiva, perda ou excesso de apetite;
  • Baixa autoestima, insegurança, comportamentos sexuais inadequados para a idade, busca de isolamento;
  • Lesões, hematomas e outros machucados sem uma explicação clara para terem ocorrido;
  • Gravidez precoce;
  • Doenças sexualmente transmissíveis;
  • Fugas de casa e evasão escolar;
  • Medo de adultos estranhos ou medo especifico de algum conhecido, medo de escuro, de ficar sozinho e de ser deixado próximo ao potencial agressor.

Não há um perfil exato que possibilite saber quem é abusador, mas a maioria são homens da família, tios, padrastos, pais, vizinhos ou pessoas que convivem com crianças.

A suspeita de abuso pode ser denunciada ao Disque 100 (ligação anônima e gratuita).

“É dever de todos a proteção das crianças e adolescentes. A sociedade não pode se omitir.  Para isso quanto mais campanhas de conscientização sobre o abuso e mais informações as pessoas receberem, mais preparadas estarão para identificar e denunciar os casos. 18 de maio é o dia nacional de combate ao abuso sexual e a data é marcada por muitas atividades para conscientização. Em Itupeva, durante os anos em que atuei como conselheira e levantamos grandes campanhas de conscientização, era notório o aumento das denúncias à medida que a população recebia informações sobre o assunto. Além da família e da sociedade o Estado também precisa agir”, finaliza Eliana.

Também é importante destacar que, apesar dos casos recentes envolvendo a ginástica, o abuso pode ocorrer em qualquer ambiente, seja ele esportivo ou não. 

Agradecimentos e serviço

Um agradecimento especial aos professores Anderson e Natália, que toparam contribuir para essa matéria com sua experiência e também à Eliana, cuja atuação fez importante diferença na vida de muitas pessoas em Itupeva por anos, um trabalho que continua sendo realizado com competência pelo Conselho Tutelar e todas as pessoas que se mostram dispostas a proteger os direitos da criança e do adolescente.

Ginástica em Itupeva

            Informações na secretaria de Esportes e Lazer, no ginásio Dorival Raymundo, Rua Deolinda Silveira de Camargo, 300 – Centro. Tel: 4591-1214.

Ginástica em Jundiaí

            MUVe ConceptsAvenida Paula Penteado, 126 – Jundiaí – SP

Aulas às segundas e quartas-feiras em três horários (9h30 – 10h30; 15h30 – 16h30 e das 18h30 às 19h30). Telefone: (11) 99802-6677 ou (11) 98377-7333.